quarta-feira, 5 de março de 2025

 

O BISAVÔ E A DENTADURA


Eu ouvi esta história de uma amiga, que disse que isso aconteceu, de verdade, em Montes Claros, Minas Gerais.

Para contar a história, é preciso imaginar uma velha fazenda antiga. Dentro da fazenda, uma vetusta (socorro, que palavrão!) mesa colonial, muito comprida, de jacarandá, naturalmente. Em volta da mesa, tudo que mineiro tem direito para um bom almoço: tutu, carne de porco, linguiça, feijão-tropeiro, torresminho, couve cortada bem fina... e eu nem posso descrever mais, porque já estou com excesso de peso, só de pensar: hum, que delícia!

A família era enorme e comia reunida, em volta da toalha bordada: pai, mãe, avó, avô, filhos, netos, sobrinhos, afilhados, a comadre que ficou viúva, a solteirona que era irmã da vó da Mariquinha... e o bisavô Arquimedes. O bisavô Arquimedes usava dentadura.

Naturalmente, cada integrante tinha à sua frente o seu saboroso prato de tutu, couve, torresmo, feijão-tropeiro, carninha de porco, linguiça etc. e tal. E todos mastigavam e repetiam porque a fartura, ali, em Montes Claros, naquele tempo, era um espanto, de tanta! E cada um, evidentemente, tinha o seu copo. Pois os copos e o bisavô Arquimedes, diariamente, sofriam a seguinte brincadeira:

- Toninho, ocê vai beber desse copo aí, na sua frente? Olha que o bisavô deixou a dentadura dele de molho, bem no seu copo, Toninho, na noite passada!

- Num foi no meu, não: foi no copo da Maroca! O bisavô deixou a dentadura dentro do copo da Maroquinha!

- Ó gente, num brinca assim que eu fico cum nojo, uai!

O velho bisavô Arquimedes ouvia, sorria, mostrando a dentadura.

Quando chegava o doce de leite, o queijinho, a goiabada e uma tal de sobremesa que tem o nome de “mineiro de botas”, que tem queijo derretido, banana, canela, cravo, sei lá mais que gostosuras, o pessoal comia, comia. E depois de comer tanto doce, a sede vinha forte, e a chateação começava, ou recomeçava, ou não terminava.

- Tia Santinha, não beba do copo da dentadura do bisavô, cuidado! Tenho certeza de que a dentadura ficou no seu copo, de molho, a noite inteira!

O bisavô ouvia e ia mastigando, o olhinho malicioso, nem te ligo para a brincadeira, comendo a goiabadinha, o “mineiro de botas”, o doce de leite, o queijinho... e mexendo a dentadura pra lá e pra cá, pois a gengiva era velha e a dentadura já estava sem apoio. Mas o bisavô tinha senso de humor... e falava pouco. O pessoal cochichava que ele era mais surdo do que uma porta. Bestagem, porque se existe coisa que não é surda, é porta: mesmo fechada, deixa passar cada coisa...

Um dia, de repente, o bisavô apareceu sem a dentadura. E como todos perguntaram para ele o que tinha havido, o velho Arquimedes sorriu, um sorriso banguela, dizendo:

- Ocês tavam perturbando demais, todos com nojo dela, resolvi não usar, uai!

Aí, a família ficou sem jeito, jurando que não iria falar mais da dentadura, que tudo fora brincadeira, que todos adoravam o velho Arquimedes, que ele desculpasse.

-Tá desculpado, num tem importância. Eu já tava me aborrecendo com a história, mas tão desculpados. Mas até que tô achando bom ficar banguela: vou comer tutu e sopa... e doce de leite mole, ora!

A família insistiu, pediu perdão, mas o bisavô botou fim à conversa, dizendo:

- Ôces num insistam. Resolvi e tá resolvido. O dia que eu deixar de resolver, boto a dentadura outra vez!

E passaram-se vários dias. Ninguém mais fazia a brincadeira do copo. De vez em quando, o bisavô lembrava:

- Tô sentindo falta...

- Da dentadura, bisavô?

- Não, da traquinagem de ocês... ninguém tá com nojo de beber água no copo, né?

- Ora, o senhor não deve levar a mal, foi molecagem, a gente não faz mais, pode usar a dentadura, bisavô.

Um dia, de repente, o bisavô voltou a usar a dentadura. Todos na mesa se cutucaram e começaram a rir, muito disfarçado, quando bebiam água, pensando... sem dizer, pois haviam prometido.

Depois da sobremesa, boca pedindo água depois de tanto doce caseiro, o velho Arquimedes disse: 

- Ocês tão bebendo tanta água, sem nojo...

- Bisavô, era brincadeira!

- Eu também fiz uma brincadeira: durante todo esse tempo que fiquei banguela, minha dentadura ficou de molho, dentro do filtro!

Sylvia ORTHOF, et al. Quem conta um conto?. São Paulo: FTD, 2001. 

 

Vocabulário:

ü  Vetusta: muito velha, deteriorada pelo tempo.

ü  Traquinagem: travessura.

 BOM DIA, TODAS AS CORES

"O meu amigo Camaleão acordou muito bem-disposto.

Bom dia sol, bom dia flores, bom dia todas as cores!

Lavou a cara numa folha cheia de orvalho, mudou a sua cor para cor-de-rosa, que ele pensava ser a mais bonita de todas as cores, e pôs-se ao sol, contente da vida. O meu amigo Camaleão estava feliz porque tinha chegado a primavera. E o sol, finalmente, depois de um inverno longo e frio, brilhava, alegre, no céu.

Eu hoje estou de bem com a vida - disse ele - Quero ser bonzinho para todos...

Saiu de casa, e o Camaleão encontrou o professor Pernilongo.

O professor Pernilongo toca violino na orquestra do Teatro Florestal.

Bom dia, professor! Como vai o senhor?

- Bom dia, Camaleão! Mas o que é isso? Por que é que mudaste de cor? Essa cor não te fica bem...Olha para o azul do céu. Por que não ficas azul também?

O Camaleão, amável como era, resolveu ficar azul como o céu da primavera...

Até que numa clareira o Camaleão encontrou o sabiá-laranjeira:

Meu amigo Camaleão, muito bom dia! Mas que cor é essa agora? O amigo está azul, por quê?

E o sabiá explicou que a cor mais linda do mundo era a cor alaranjada, a cor da laranja dourada.

O nosso amigo, muito depressa, resolveu mudar de cor.

Ficou logo alaranjado, louro, laranja, dourado. E cantando, alegremente, lá se foi, todo contente...

Na clareira da floresta, saindo da capelinha, vinha o senhor Louva-A-Deus com a família inteirinha. Ele é um senhor muito sério, que não gosta de gracinhas.

Bom dia, Camaleão! Que cor mais escandalosa! Parece uma fantasia para um baile de Carnaval... Devias arranjar uma cor mais natural...Vê o verde da folhagem... o verde da campina... Devias fazer o que a natureza ensina.

É claro que o nosso amigo resolveu mudar de cor. Ficou logo bem verdinho e foi pelo seu caminho...

Vocês agora já sabem como era o Camaleão. Bastava que alguém falasse, que mudava de opinião. Ficava roxo, amarelo, ficava cor-de-pavão. Ficava de todas as cores. Não sabia dizer NÃO.

Por isso, naquele dia, cada vez que se encontrava com algum dos seus amigos, e que o amigo estranhava a cor com que ele estava... adivinhem o que fazia o nosso Camaleão? Pois, ele mudava logo de cor, mudava para outro tom...

Mudou de rosa para azul. De azul para alaranjado. De laranja para verde. De verde para encarnado. Mudou de preto para branco. De branco virou roxinho. De roxo para amarelo. E até para cor de vinho... Quando o sol começou a pôr-se no horizonte, Camaleão resolveu voltar para casa. Estava cansado do longo passeio e mais cansado ainda de tanto mudar de cor.

Entrou na sua casinha, deitou-se para descansar e lá ficou a pensar:

Por mais que nos esforcemos, não podemos agradar a todos. Alguns gostam de farofa. Outros preferem farelo... Uns querem comer maçã. Outros preferem marmelo... Tem quem goste de sapato. Tem quem goste de chinelo... E se não fossem os gostos, que seria do amarelo?

Por isso, no dia seguinte, Camaleão levantou-se bem cedo.

Bom dia sol, bom dia flores, bom dia todas as cores!

Lavou a cara numa folha cheia de orvalho, mudou a sua cor para cor-de-rosa, que ele pensava ser a mais bonita de todas, pôs-se ao sol, contente da vida.

Logo que saiu, Camaleão encontrou o sapo Cururu, que é um cantor de sucesso na Rádio Jovem Floresta.

Bom dia, meu caro sapo! Que dia mais lindo, não está?

- Muito bom dia, amigo Camaleão! Mas que cor mais engraçada, antiga, tão desbotada...Por que é que não usas uma cor mais avançada?

O Camaleão sorriu e disse para o seu amigo:

Eu uso as cores que eu gosto, e com isso faço bem. Eu gosto dos bons conselhos, mas faço o que me convém. Quem não agrada a si mesmo, não pode agradar ninguém..."

E assim aconteceu o que acabei de contar.

Se gostaram, muito bem!

Se não gostaram, azar!


Ruth Rocha